“A criatividade tem prioridade, arrumam-se as formatações na gaveta”


À primeira vista parecem um bando de pardais à solta, que reage coordenado às mudanças de trajetória da bola e aos desvios que ela sofre a cada toque. Aos miúdos dos 7 aos 10 anos da escola de formação do Padroense FC é dada a liberdade de “brincarem” ao futebol, porque uma das regras, nestas idades, “privilegia a relação das crianças com a bola”. A frase é de José Ribeiro, um treinador que é bem mais do que isso e que o demonstra na forma como aborda o futebol nestas idades.  “O futebol é como um par de sapatos, não se pode calçar uma criança como se calça um adulto”, defende. Aqui a criatividade tem prioridade, arrumam-se as formatações na gaveta.

Ao aluno – porque o atleta só virá mais tarde – permite-se mais um passe, mais um drible ou um remate, no fundo, deixa-se expressar a tomada de decisão de cada cabeça e descobrir, mas há mais aspetos a levar em conta, alguns básicos, relacionados com o contexto atual. “Até aos 10 anos, percebe-se que lhes falta o que nós tínhamos na nossa geração, que era brincar na rua e não só a jogar futebol, mas a praticar – sem termos a noção – várias outras modalidades. O que nós fazemos é transportar isso para o treino dentro do possível”, explicou José Ribeiro.

Brincar não significa que as coisas em campo não façam sentido, porque nestas idades colocam-se inúmeras questões aos treinadores. “Numa geração muito desenvolvida ao nível dos polegares e dos dedos, com os comandos dos jogos e os teclados dos computadores, nota-se que ao nível da coordenação motora lhes falta muito, porque a forma como as crianças brincam hoje mudou muito, estão mais fechados em casa, são crianças de interior”, sublinhou. A observação soa a perspicaz, mas faz todo o sentido, quando se percebe a forma como algumas crianças correm ali ao lado. “O que se trabalha mais nas idades dos 7 aos 8 anos tem muito a ver com estímulos à coordenação motora das crianças e à relação deles com a bola, no passe, drible, remate e condução motora”, completou o mister.

Mais à frente, de costas para uma pequena baliza de plástico, os alunos dão largas à imaginação, alguns, quem sabe, repassando na cabeça as imagens do célebre golo do Cristiano Ronaldo à Juventus, na Champions, com sucessivas tentativas de remates de bicicleta. “Mas o que eles não sabem é que estão a aprender a cair de costas, a perder esse medo, e a aperfeiçoar a execução do movimento do pontapé de bicicleta”, fez notar.

Um dia o movimento sairá “naturalmente”, porque a técnica foi sendo adquirida desde o início da formação e começou… a brincar. “Nesta fase de desenvolvimento de uma criança, elas deviam praticar todas as modalidades que fosse possível. O Bayern Munique já percebeu isso e já o põe em prática, porque a nível motor elas vão ganhar muito com isso. Neste grupo de alunos tenho aqui uma criança que praticou capoeira e natação. À capoeira vai buscar o foco e à natação a coordenação de movimentos, ou seja, as diferentes modalidades que se possam praticar nestas idades vão ajudar a desenvolver a criança a vários níveis, quer na coordenação motora, quer ao nível mental, e no caso do futebol, na relação com a bola”, argumentou José Ribeiro.

Traçando um paralelismo entre aquilo que se aprende na escola do Padroense FC e aquilo que se aprende na escola, o mister não podia ter sido mais claro: “O futebol é um pouco como a matemática e a matemática que se dá no primeiro ciclo é diferente da que se dá no segundo e terceiro ciclos. Primeiro há que aprender os números, começar a somar, multiplicar, dividir e ir por aí fora. O futebol é igual, nestas idades têm de aprender o passe, drible, condução e controlo de bola, etc… É o ABC. Portanto, a vertente tática nestas idades não é fundamental”.

Depois há que conjugar tudo isso com aquilo que é próprio de cada criança e possa trazer benefícios ao coletivo. “Mais do que lhes darmos soluções criámos-lhes problemas no treino e vamos à procura daquilo que as pessoas chamam geralmente de futebol de rua. Brinca-se ao futebol um bocadinho mais a sério, mas sempre com um propósito. É claro que temos sempre de introduzir alguma competição no exercício para os motivarmos e os levarmos a melhorar com a repetição, mas o importante nestas idades é a parte lúdica, porque estamos a falar de crianças entre os 7 anos e os 10 anos”, sublinhou.

Aspeto a ter em conta, como já se disse atrás, é a criatividade individual e aqui José Ribeiro destaca uma questão fundamental e aponta mais além: “Partindo do jogo, da sua organização estrutural e dinâmica, o processo ensino/aprendizagem deve permitir que a formação não resulte numa deformação, mas que seja uma descoberta guiada que se manifesta numa liberdade e criatividade individual capaz de atuar em benefício do coletivo”, frisou, antes de acrescentar que “a característica, para mim, mais importante num jogador de futebol é a tomada de decisão e a sua tomada de decisão e a da equipa estão relacionadas com a análise que faz àquilo que é o jogo, àquilo que é o momento e àquilo que é o problema que o jogo lhe apresenta”.

Em alguns dos seus artigos já publicados, o treinador advoga ainda que os alunos devem experimentar todas as posições de uma equipa de futebol. “Cada posição tem funções e relações diferentes com os colegas e com as zonas do campo e as crianças devem passar pelas experiências mais variadas possíveis para aprender”, argumentou.

José Ribeiro fecha o círculo com outra vertente, que por vezes passará ao lado de muita gente, mas que no Padroense FC também não é descurada: “Treinar nestas idades é ter a noção da relação com bola, como disse, mas também da relação com o colega de equipa e com o adversário. Não é só deixar a criança tomar a decisão, ou a iniciativa de fazer um passe, driblar ou rematar. Temos de ter em atenção que estas crianças têm de ser educadas para lidar com a alegria de vencer e a frustração, ou a deceção, de perder, quer entre jogadores da mesma equipa, quer com os adversários”.

O próprio José Ribeiro é um exemplo de aprendizagem e superação, e continua a dar os treinos da sua cadeira de rodas, depois de um acidente que o tornou paraplégico, em 2012. O treinador da escola do Padroense FC é também um homem de letras, tendo editado já dois livros “Os segredos de meditar no futebol” (2016) e “O vagabundo” (2018).