Pinheirinhos de Ringe transformaram “o Iraque” em oportunidade


O bairro de Ringe não seria o mesmo se não fosse a Associação de Moradores do Complexo Habitacional de Ringe, fundada em março de 1987. Num meio cheio de problemas sociais, com famílias desestruturadas e sem recursos, não tardaram a instalar-se vícios de várias ordens, toxicodependência e delinquência, que só não se implementaram definitivamente porque a associação de moradores resolveu virar-se para o futebol e abrir as portas de uma escolinha, em 2004.

Ali ao lado, a GNR abriu um posto, entretanto e, com o tempo, tudo se conjugou. O futebol ajudou a curar algumas feridas sociais, integrar as crianças do bairro e, aos poucos, afastar o estigma. Mudaram-se comportamentos e limparam-se maus hábitos quando começaram a atrair crianças para a prática do futebol, sem pagar mensalidade. “Fundaram uma escola de futebol com o meu nome, chamaram-lhe “os pinheirinhos de Ringe”. Sempre sonhei ter uma escolinha de futebol, ainda cheguei a propor o projeto ao Desportivo das Aves mas, na altura disseram que já tinham crianças que chegasse e não queriam mais. Foi o Joaquim Faria, que era presidente do Ringe e agora é presidente da Junta de Freguesia, que me convenceu a vir para cá”, conta Adílio Pinheiro. “Comecei com quatro crianças, pensei que isto não ia avançar. Mas depois apareceram mais e a certa altura já tinha uns 40 jogadores. Treinávamos num espaço que era uma lixeira autêntica. Isto era o Iraque, ninguém imagina isto. Era mesmo como no Iraque!”, repetiu o treinador. “Muita gente das Aves nem conhece isto. Foi tudo abaixo para construir a escolinha. Mas ainda hoje, é difícil para algumas pessoas meterem aqui os filhos, porque têm medo, preferem apostar em outros clubes, mesmo a pagar”, explicou.

À margem do futebol, a associação conta com um ATL, um centro comunitário onde podem ter apoio social, psicológico, banca de roupa, gabinete de apoio aos jovens, colónia de férias, banco de voluntariado, centro de convívio e formação em informática. “Temos uma coordenação social com a associação do bairro para se perceber a situação de cada criança, porque cada caso é um caso. Não queremos deixar ninguém de fora, aceitamos toda a gente para ajudar as crianças a crescer e fazerem-se homens”, acrescenta Raúl Pinheiro, filho do treinador e dirigente do clube. “Temos dificuldades para atrair treinadores para cá, porque não temos como lhes pagar. Temos dois casos em que ajudamos a pagar a formação deles para podermos contar com treinadores, porque é normal que quem se forme acabe por querer ganhar algum dinheiro com isso. Mas tivemos de dar esse passo”, partilha ainda.

No meio de tantas adversidades surgiram, recentemente, motivos que enchem de orgulho os membros do clube que viu Vitinha, médio do Paris Saint-Germain, e Diogo Costa, guarda-redes do FC Porto, nascerem para o futebol. “Temos dois jogadores que vão estar com a seleção de Portugal, no Mundial do Catar”, sublinhou Raúl Pinheiro. “O Vitinha e Diogo vieram juntos para cá e saíram para o Benfica do Prado, antes de irem para o FC Porto. Mas o Diogo Costa, hoje, pode dizer que é jogador, porque o pai do Vitinha se ofereceu para o levar a trazer aos treinos do Benfica do Prado, com o filho, porque os pais do Diogo eram separados e não tinham condições, nem tempo, para andar com ele para um lado e para o outro. São estas pequenas coisas que também são importantes para que um jogador apareça”, acrescentou ainda.

Mas é mesmo Adílio Pinheiro que esteve nos primeiros passos dos dois internacionais. “Comecei por ser treinador do pai do Vitinha, o Vítor Manuel, entre os 12 e os 18 anos. Também treinei o Vasco, o irmão dele, mas eu também tinha sido treinado pelo pai deles. É uma família à qual estou muito ligado. Um dia resolvemos ir a um torneio de infantis e pedi ao Vítor Manuel para levar o Vitinha, que estava no Aves. No fim o Vitinha gostou tanto que já não quis voltar para o Aves e ficou connosco”, recordou. “Com o Diogo Costa, fui colega do avô dele nos juniores do Aves, e um dia foi ele que me disse que tinha o neto a dar cabo das sapatilhas na praceta e pediu-me para o levar para o Ringe. O Diogo apareceu no dia seguinte. Na altura tínhamos uma equipa de futebol de cinco muito boa, que ganhava a toda a gente. No início, ele nem queria ser guarda-redes, mas convenci-o, porque isto era em terra batida. Não se queria atirar para o chão e eu dizia-lhe que nem era preciso, bastava que ele se pusesse à frente da bola para ela não entrar na baliza. Não queria, foi para casa a resmungar, mas no treino do dia a seguir voltou todo equipado. Ainda assim, fez um contrato comigo, jogava metade na baliza e outra metade na frente, porque tinha bons pés e marcava muitos golos. Aliás, isto também serve para se perceber o porquê de ele jogar tão bem com os pés”, contou Adílio Pinheiro.

Mas a história dos Pinheirinhos de Ringe tem inúmeros capítulos com vidas que mudaram de rumo e gente agradecida por um dia se terem cruzado com Adílio Pinheiro. “De 2004 para cá, desviar crianças do mal é o nosso objetivo. Ajudamos até em termos de saúde e bem-estar. Tenho um sobrinho que ficou diabético aos 5 anos, veio para os “pinheirinhos” e hoje é professor. Tenho muito orgulho nele, porque foi o primeiro. Hoje, a maior parte cruza-se comigo e vem cumprimentar-me. No dia 4 de novembro, a primeira equipa que foi a um torneio a Bordéus juntou-se pela primeira vez, escolheram a data dos meus anos para fazer uma festa, foi espetacular. São coisas que não se esquecem e que nos fazem andar aqui”, suspirou o treinador.

Mas não é só nos Pinheirinhos de Ringe que Adílio Pinheiro tem feito a diferença, porque se há coisa que caracteriza o mister é o facto de conjugar o verbo “ajudar” de várias formas e acabar por ter de aproveitar ao máximo as 24 horas do dia: “Sou secretário da Associação dos Bombeiros, faço parte do executivo da junta de freguesia, sou presidente da associação de reformados, tenho um centro pastoral onde se faz a celebração da palavra e dou catequese às crianças. Hoje só sinto falta da minha mulher, que faleceu há dois anos. Era ela quem me apoiava, era o meu braço direito para tudo, tinha sempre tudo pronto para eu sair depois do trabalho. Mas não tenho dia nenhum sem ocupação, ainda hoje ajudo na Junta, porque era picheleiro e faço as obras nas escolas e onde é preciso. Mas é pela grande consideração que tenho pelo Joaquim Faria, o “Quinzinho” para mim!”.