Decorria a primeira parte do FC Pedras Rubras-Oliveira do Douro, quando José Gabriel, jogador da equipa da casa, ficou caído no relvado desmaiado, na sequência de um choque com um adversário. Com o jogador no chão, Samuel Cunha, árbitro do encontro da 11ª jornada da Série 1 do Campeonato da Divisão de Elite Pro-Nacional, da Associação de Futebol do Porto, nem pensou duas vezes e precipitou-se para assistir o atleta que jazia sem sentidos. “Fiz o que se costuma fazer nestas circunstâncias, sem saber se eram os procedimentos corretos”, reconheceu o árbitro, que não tem qualquer formação de primeiros socorros. “Depois disseram que tinha feito o correto e que talvez isso tivesse salvado até a vida do jogador. Mas foi tudo instinto”, acrescentou. Naquele momento, a urgência de salvar uma vida sobrepôs-se a tudo. “Não vou esconder que me senti feliz e aliviado quando aquilo acabou. Por vezes, a nossa autoestima está em baixo, sentimo-nos um pouco frustrados com o trabalho ou com o futebol, mas naquele dia senti-me uma pessoa melhor”, comentou Samuel Cunha, com uma humildade desarmante.
Poucas horas depois da sua intervenção, as imagens da assistência ao jogador já circulavam nas redes socais e na televisão. “Na sociedade em que vivemos este devia ser um ato normal, mas só teve mais mediatismo por ter sido um árbitro”, apontou. Samuel Cunha não só recusou a capa de herói, como se mostrou um pouco avesso a tanto mediatismo, diz que não aceitou os convites de vários canais de televisão para entrevistas, porque não quis aparecer, não condiz com o feitio dele. “Não escondo que foi bom, que foram três dias loucos que acabaram. Só espero que tudo fique para trás. O que interessa foi o ato, não o mediatismo. Desta vez, pelo menos, saiu nos jornais alguma coisa a falar bem de um árbitro, o que não é muito normal”, brincou.
“Mas recebi muitos telefonemas, os verdadeiros amigos ligaram. Conversei com o presidente da Associação de Futebol do Porto, o José Neves, que me deu os parabéns pelo gesto”, lembrou ainda, antes de revelar que este ato pode ter sido o primeiro passo para inovar e tornar os árbitros ainda mais completos. “Na conversa que tive com o José Neves abordamos a possibilidade de os árbitros poderem receber formação de primeiros socorros e suporte básico de vida e o presidente até se ofereceu para avançar com essa formação num futuro próximo, através dos núcleos”, revelou ainda, aludindo ao facto de ao nível do distrital nem sempre estarem presentes nos jogos não só médicos, como enfermeiros, ou fisioterapeutas, para intervir em caso de necessidade.
No intervalo, o delegado ao jogo abordou Samuel Cunha felicitando-o. “Queria dar-me um cartão branco”, confidenciou. “Mas, como não tinha nenhum perguntou se eu tinha algum. Respondi que não queria o cartão branco, porque não tinha feito nada que outra pessoa não tivesse feito e que não merecia. Mas o meu assistente deu-lhe um cartão branco que tinha com ele, sem eu saber. No final do jogo insistiu e exibiu-me o cartão branco, como se vê numa fotografia que, entretanto, o FC Pedras Rubras publicou no Facebook. Fica o ato e o marco na minha carreira e a satisfação por algo bom”, contou ainda.
Para o árbitro, a situação acaba por contrastar com algumas frustrações que a arbitragem, por vezes, também traz: “Já sou árbitro desde 2007 e costumo dizer que nós, como árbitros, também perdemos. Não regresso a casa contente se falhar num lance de uma grande penalidade, ou num ato disciplinar. Imagino que muitas pessoas possam pensar que isso é indiferente para um árbitro, mas garanto que se sentir que falhei venho embora triste. Por isso digo que os árbitros também perdem. Mas neste caso propriamente dito, senti que ganhei o dia”.
Para além da vida de José Gabriel, o árbitro do Porto acredita que a situação possa trazer um olhar diferente sobre a arbitragem: “Não sou eu que vou mudar o futebol, o árbitro será sempre a pessoa mais fácil de atacar quando se perde, mas pode ser que, pelo menos nos dois clubes que passaram pela situação algumas opiniões mudem. Parece-me que a mentalidade do futebol está a mudar, o que é bom sinal. Há uns anos, uma equipa perdia e era culpa do árbitro, ia-se ao futebol para descarregar em cima do árbitro a frustração acumulada durante a semana, mas hoje já não é bem assim. Claro que defendo a arbitragem e o mais positivo disto é que as pessoas vão acabar por perceber que a arbitragem é uma coisa boa e que os árbitros são boas pessoas. Há uns melhores do que os outros, nunca digo que há árbitros maus, é como em todas as profissões. Mas pode ajudar a mudar um pouco a imagem dos árbitros junto dos adeptos, porque os árbitros também têm família, erram como qualquer um, claro, mas também são boas pessoas”.
Durante a semana, Samuel Cunha conseguiu chegar ao contacto com José Gabriel e ouvir da boca do próprio que está bem de saúde e que não foram detetados quaisquer problemas. Para trás ficou um domingo que terminou com um grande susto para o jogador.